quarta-feira, 2 de fevereiro de 2011

Em foco nossa cultura - Ninho Nascimento - Entrevista

Mons. Valter, onde e quando começa sua história com a igreja católica?

Eu sou filho de Conceição do Almeida, última cidade do Recôncavo da Bahia, onde já começa o médio sudoeste. Nasci em 1939, sou de uma família de seis filhos, meus pais já são mortos. Estudei lá, onde fiz o curso primário; fiz exame de admissão, em 1950, que era uma espécie de vestibular e comecei a fazer o curso fundamental e o segundo grau nos Maristas, em Salvador.

Minha família sempre foi ligada à igreja, cresci na igreja, fiz 1ª Comunhão aos nove anos, fui coroinha, participei de todos os movimentos religiosos nos Maristas, fui da Congregação Mariana, do Apostolado da Oração, trabalhei em teatro, fiz peças, participei de coral, da Academia Rui Barbosa que os alunos do científico faziam parte, dei aula numa escola noturna para domésticos, então digo sempre que sou produto de três coisas: a família, os maristas e o seminário. Quando terminei o segundo grau quis ir para o seminário, fiz o curso de Filosofia, depois, Teologia e Pedagogia para administração escolar, dei aulas e fui diretor do seminário em 1963. Me ordenei em 1964 e fui para o seminário de Amargosa, atuando lá como professor e reitor, mais adiante criei a paróquia de Mutuípe, construímos a igreja matriz de Lajes, de Mutuípe e de lá fui para Jequié, em 1976, ficando por lá até 1980 para criar a diocese. Fui eleito presidente de uma comissão nacional do clero que é uma espécie de assessoria da CNBB, mas eu tinha que viajar muito para Brasília para implantar conselhos presbiterais, um ano depois eu disse ao bispo que precisava ficar em Salvador principalmente para evitar as viagens excessivas. Na capital fiquei um ano como capelão da Casa da Providência, depois pároco da Saúde, diretor do colégio Henriqueta Martins Catarino. Daí, Dom Avelar me pediu para ir para o Bomfim, lá fiquei 27 anos e, finalmente, Dom Geraldo me indicou para vim pra cá, substituindo padre Hélio e ao mesmo tempo ser vigário episcopal da região, no dia 17 de fevereiro faço três anos que estou aqui.

Mons., o senhor já está completamente adaptado à cidade e à comunidade?

Facilmente eu me adapto aos ambientes, às pessoas e seus costumes, parece que já estou aqui há muitos anos.Dados de uma pesquisa recente da revista Isto É, apontam a igreja Universal como a que mais cresceu nos últimos 20 anos, na contra mão desses dados, a igreja católica registra uma queda acentuada de fiéis.
O senhor concorda com esses números e por que isso está acontecendo?

Duas são as razões para que isso aconteça: a primeira é que, sem destruir o passado, a igreja alimentou muito as devoções, por uma questão até de contra reforma, já que a reforma protestante destruiu as devoções, a igreja teve que reafirma-las e não foi uma catequese convincente. Enquanto a reforma valorizava a palavra de Deus, a igreja católica valorizou mais as devoções, essa é uma primeira causa. A segunda é que a igreja católica ficou falando numa linguagem muito alta e o povo não entendia. Vou lhe dar um exemplo: eu, padre ainda jovem, fui pregar a festa de São Miguel das Matas, terminada a missa, na sacristia, uma senhora me perguntou? Seu vigário, de onde o senhor é? Eu sou do seminário de Amargosa, respondi, e ela me disse: seu vigário, o senhor fez uma pregação muito bonita! E eu perguntei pra ela: o que é que a senhora entendeu da pregação? E ela me respondeu: entender, eu não entendi, mas que foi bonita, foi...! Então, é essa linguagem que a gente falava e que estava muito acima da capacidade do povo. Tem ainda uma terceira causa: a igreja foi vanguarda durante muitos anos no Brasil, de contestar revoluções, de bater firme, de propor reforma agrária e outras questões sociais, digamos assim e ultimamente a igreja tem ficado um pouco ausente disso. Uma outra coisa: infelizmente, a linguagem e as propostas feitas por algumas igrejas não são honestas. Me refiro às propostas de curar câncer, de curar AIDS, de curar não sei o que. Nosso povo simples não sabe por exemplo que uma árvore não vive dois mil anos porque não estudou, mas o missionário que estudou diz e quando você não estuda, costuma acreditar na palavra de quem estudou; existem pastores que dizem que o óleo vai curar, vai fazer e acontecer. É muito difícil tirar alguém do vício porque o vício torna-se uma doença e doença a gente trata com remédio. Aí começam os milagres nessas igrejas: porque eu andei, porque eu falei, eu vi, enxerguei, deixei de beber e o nosso povo sofrido, sem ter hospitais, sem ter médico, sem ter vida digna, vê naquilo uma esperança. Eu não posso usar essa linguagem, eu não posso ser milagreiro, Deus faz milagres, mas não brinca de milagre com o povo, nós, dá igreja católica falamos uma linguagem muito séria e comprometida, não podemos vender Jesus Cristo nem mercantilizar com Jesus Cristo.

Um outro dado dessa pesquisa é a queda vertiginosa da cerimônia de casamentos que é considerada por muitos uma instituição falida, esse também não seria um reflexo do descrédito dos fieis na igreja católica?

Tudo é fruto da família. As famílias estão se desestruturando, os pais tornam-se exemplos aos filhos porque a nossa maior escola não é a universidade, é a nossa casa. Fui diretor de colégio durante 26 anos, sei o que é isso. A casa dos pais é a escola dos filhos, essa é uma afirmação popular da sabedoria e profundíssima! O que o berço dá, só a sepultura tira. Então, quando a família se desestrutura, os jovens crescem num ambiente sem muitos valores. Hoje não se fala mais em namorar, se fala em ficar, um manipula o outro como “coisa”. No momento que aquela coisa não satisfaz mais, dá um chute e pronto. Depois, um dos males terríveis da revolução de 64 foi: para sufocar o idealismo, escancarou-se as portas para o sexo, um tipo de compensação. Por exemplo: não entrava no Brasil nenhuma revista indecente, depois da revolução, passou a entrar por conivência do governo, vindo dos países mais liberais como Holanda, então o sexo passou a ser, não uma parte integrante do homem, eu nem digo o sexo, digo a genitália, porque sexo depende da resposta de dois. As garotas de programas, por exemplo, não sentem prazer, às vezes transam com dez homens numa noite e como recebem dinheiro, são apenas um instrumento de prazer. Tudo isso nos leva a um descrédito, mas desgraçado o país que a instituição familiar venha por terra, porque se afirma sociologicamente que a célula mãe da sociedade é a família. Então o problema da instituição familiar não é só na igreja católica porque em todas as outras igrejas acontecem ou deixam de acontecer casamentos...

O senhor e o padre Rogério estão conseguindo realizar um trabalho bastante elogiado pela comunidade que é o de atrair jovens católicos às missas e outros eventos ligados à igreja, fale-me um pouco desse trabalho:

Sinceramente não fico preocupado com o número de fiéis dentro da igreja. Observe: quantos cidadãos o Brasil tem em números? Cerca de 192 milhões, não é? E são todos cidadãos? Não são! Um eleitor que vende o seu voto nas eleições, ele é um cidadão? Ele é um troço! Então, não estou interessado em quantidade, estou interessado em qualidade. Agora mesmo os pastores evangélicos me pediram para que suspendesse as missas do sábado e domingo porque eles estavam realizando um show gospel, eu entendi a importância do evento para eles e suspendi as missas. Alguns católicos reclamaram dizendo que eu não deveria abrir mão, mas eu não posso fazer isso. Eu acho que se eu tenho todos os sábados e domingos e eles só estão pedindo um sábado, porque não abrir mão? Depois eu não sou o prefeito da cidade, eu pode-ria negar e o prefeito conceder. Nós temos que conviver com a pluralidade. Resultado, eu recebi um ofício do presidente da igreja deles em agradecimento a atenção que dei. Acho que tenho que conviver com as diferenças. Lá no Bomfim eu convivia pacificamente com todo mundo, com o pessoal do culto afro, agora, nunca abri mão da doutrina, nem posso abrir. Eu posso conviver com comunistas ou com quem quer que seja, só não posso abrir mão dos princípios pelos quais eu sou padre. Para mim é muito melhor você ter dentro da população de Santo Amaro, três ou quatro mil católicos convencidos do que ter uns trinta mil “flor de laranjeira”.

A parte profana da Festa da Purificação cresceu bastante, ao ponto de alterar o calendário da novena, fato que desagrada até hoje muitos fiéis, principalmente os mais tradicionais, o que tem a dizer a respeito disso?

O que aconteceu foi o seguinte: a festa do Bomfim, em Salvador, tornou-se modelo para as festas das cidades próximas. Quando cheguei ao Bomfim, em 1981, não existia nem um trio elétrico na festa, foi Marcos Medrado num ano de eleição quem colocou um trio elétrico na Lavagem. No ano seguinte tinham dois, foi crescendo e chegou a ter trinta. Lá chegou a um ponto de não podermos fazer a novena. No ultimo ano que teve novena no dia da lavagem eu não consegui chegar à igreja, mesmo num carro da rádio Excelsior que na época eu era diretor. Falei pela VHF para o Bomfim e pedi ao meu vigário paroquial que fizesse a novena. O maestro não chegou, gente do coral não conseguiu chegar, músicos não chegaram, a novena foi feita, sabe Deus como e naquele dia, os que foram participar só conseguiram voltar pra casa de madrugada por falta de transporte. Chegou a um ponto que se houvesse alguma coisa grave, do Moinho da Bahia pra lá, morria. Um incêndio, por exemplo, no abrigo dos velhos, morriam todos queimados porque não se tinha como chegar ao local. Eram 30 trios elétricos e não sei quantos caminhões. Dom Lucas, então, resolveu suspender a novena nesse dia. Lá também muita gente não aceitou, mas não havia outra solução e aqui em Santo Amaro, padre Hélio que estava aqui há uns anos atrás, adotou a mesma solução. O que ouço dizer é que a Lavagem aqui terminava por volta das 17 horas e a novena corria normal, às 20 horas. Quando entrou o trio elétrico, paralelo às festas religiosas, acabou com tudo, a coisa desandou. Em 1981 celebrei aqui a missa da Aurora e não tinha nada de trio elétrico no programa da festa, era somente samba-de-roda e outras atrações, mas sem grandes e barulhentas bandas na praça. O que é que está acontecendo? Os políticos, todos eles, para ganharem a simpatia do povo, sacrificam a cultura local. Se não tomarem uma posição firme, as crianças de hoje não vão conhecer samba-de-roda, maculelê, bumba-meu-boi, porque se gasta numa festa da Purificação R$ 800.000,00 (oitocentos mil reais), pagando cachês caríssimos a bandas de pagode e eu pergunto: quanto se pagou às filarmônicas, aos sambas-de-roda, para as burrinhas? Então, é ai que está o problema... Na minha terra era uma beleza, era jardim suspenso, prisão do amor, correio eletrônico, não tinha tiro, não tinha briga, havia bebida, sim, mas não era o que é hoje. Infelizmente a cultura está sendo sacrificada pelo trio elétrico. Eu não sou contra as festas populares não, eu até gosto, sou contra a bagunça. Eu disse ao prefeito que o dinheiro que a prefeitura gasta com uma banda que vai tocar de 2:h em diante é dinheiro jogado fora. Quem é que fica? O pior que Santo Amaro tem e que eu não posso dizer aqui na gravação o que é esse pior. Tem que pensar que no dia seguinte o povo vai trabalhar. Parece-me que este ano serão apenas cinco dias de banda e que o horário máximo vai até as 2:h. É um pedido do povo que vai trabalhar no dia seguinte e o prefeito tem que entender isso. Sem falar nos exageros que acontecem. Como é que se admite que numa festa da padroeira da cidade tenha mulher nua em cima de um trio e homem de sunguinha? Acho que quem governa uma cidade, não tem que governar para agradar a ninguém, tem que governar para o que é melhor para o povo, mesmo que isso desagrade.

Houve um comentário por aqui há alguns anos atrás de que a Matriz da Purificação estava prestes a se tornar Catedral, em que ficou essa história?

Catedral, não será. Às vezes pago pela sinceridade do que digo e pela firmeza com que digo. Catedral é uma igreja matriz que é elevada a essa condição quando se cria uma diocese. Em 1975, os bispos da Bahia e de Sergipe, numa conferência regional, propuseram criar cinco dioceses na Bahia: Jequié, Barreiras, Irecê, Itabuna e Recôncavo. Aqui no Recôncavo ficou a disputa: Sadoc queria que fosse aqui, Neila querendo que fosse em Cruz das Almas e Edvaldo Brandão, naquela época, vice governador, querendo que fosse em Cachoeira, e o arcebispo não bateu o martelo. Isso ficou no banho Maria, vai pra lá, vem pra cá. Resultado, a necessidade continuou e quando foi o ano passado optou-se por Cruz das Almas. Historicamente Santo Amaro tem uma igreja muito mais bonita, a história religiosa da cidade é mais antiga, Santo Amaro tem muitas tradições, mas você não pode negar que Cruz das Almas é uma cidade mais desenvolvida. Lá tem universidade federal, particulares, aqui tem algumas faculdades, à distância, que é bem diferente. Economicamente também Cruz das Almas está à frente. No passado, quando o açúcar caiu, também caiu a economia de Santo Amaro... Durante os festejos dos 400 anos da matriz da Purificação, cheguei a fazer um movimento para criar aqui o título de Basílica, mas estou esperando sair a diocese para pedir ao arcebispo que peça a Roma que conceda esse título para a igreja daqui, o que seria um tipo de compensação. No interior da Bahia não existe nenhuma igreja com o título de Basílica, só na capital, a igreja da Purificação seria a primeira no interior.

Existe na cidade uma crescente onda de violência e como conseqüência, a morte precoce de muitos jovens. Como frear toda essa violência?

A violência tem algumas causas. A primeira delas é a família ou a falta dela. Quando você educa os filhos com noções de valores, mesmo que seja pobre, o cidadão não envereda por um caminho que não seja honesto. Tanto é verdade que na classe alta, hoje, está havendo muitos roubos, assaltos... As pessoas que tem parentes usuários de drogas, podem ver que na raiz do problema tem uma causa, normalmente ligada à família. Muitas pessoas pensam que o jovem pobre não pensa como o rico, mas pensa sim, e como ele não tem condições de comprar um tênis de R$ 400,00 esse jovem acha que pode usar o meio que quiser para adquirir esse bem; é um comportamento próprio dos jovens. O pano de fundo de toda a violência é a falta de estruturação familiar e as drogas, e como se combater isso? Educando porque a repressão não resolve o problema. A família tem que conversar com seus jovens e mostrar claramente as conseqüências das drogas e da violência de um modo geral. Quando a família não educa, a rua se encarrega do resto.

A igreja católica parece ter dado um primeiro passo em relação à liberação do uso do preservativo, qual a sua opinião pessoal sobre esse fato histórico?

Todo mundo quer uma palavra da igreja católica, porque não pergunta isso às outras igrejas? Tem pais que pedem às filhas para levar a camisinha quando sair ao invés de dizer a elas que se preservem, que a virgindade é um valor. Um médico muito importante, de renome, me perguntou que autoridade ele teria com as filhas para dizer que se preservassem se o Papa disse que era para as pessoas usarem a camisinha? Diante da difusão da AIDS o papa consentiu que as pessoas contaminadas com o HIV usassem a camisinha para que essas não transmitissem a doença a terceiros, sobretudo na África onde o problema da AIDS é seriíssimo! Mas o Papa chamou logo a atenção: os casais não podem usar o preservativo como meio de limitação da natalidade e o que é que a imprensa fez? Colocou uma manchete como se tudo fosse licito, mas não é, é somente para as pessoas que infelizmente vivem nesse contexto para que elas não contaminem outras pessoas.

Na próxima edição entrevista com o Padre Rogério

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