quinta-feira, 5 de maio de 2011

Herculano Neto

“Como a mais bela tribo dos mais belos índios”



Nasci e cresci no Trapiche (meus pais e minha infância ainda moram lá).
Desde pequeno, aprendi duas coisas: não falar “trapicho” ou “de baixo” – os dois juntos, então, nem pensar. O primeiro é um barbarismo inadmissível; quanto ao segundo, provavelmente, deve sua origem ao curso do rio, embora, o epíteto seja absolutamente desnecessário, já que não há o que ser diferenciado. Acho que essa lição é passada de lar em lar, pois quem a contraria, fatalmente, é residente de outra freguesia. 
Trapiche é um armazém ou depósito de mercadorias de embarque ou desembarque. Com o tempo, se tornou, naturalmente, a denominação do bairro, herança de quando a principal saída para Salvador era feita através das embarcações da Navegação Baiana, no trapiche do cais do Conde, onde hoje só há ruínas e lembranças, e antes dos bondes começarem a findar seu trajeto no Solar Araújo Pinho (“quando o bonde dava a volta ali”). 

Uma peculiaridade que chama a atenção é o uso do adjetivo “trapicheiro”, empregado aos seus moradores, fenômeno que não ocorre em nenhuma outra localidade santo-amarense, porém não é como se designasse os habitantes de uma cidade ou os torcedores de uma equipe de futebol. Não é simplesmente nomear, é qualificar. Trapicheiro, tecnicamente falando, é aquele que tem ou administra trapiches. O sufixo eiro, como formador de profissão, geralmente é destinado para as atividades de menor prestígio social (borracheiro, açougueiro, lixeiro), em oposição ao sufixo ista (economista, jornalista, analista). Intrigas gramaticais à parte, ser trapicheiro é trazer essa marca indelével na alma, eternamente, com orgulho. Pode-se até mudar de bairro, de cidade, mas essa marca o acompanhará por qualquer lugar. E pouco importa quem insiste em utilizar esse adjetivo jocosamente, de maneira deselegante e depreciativa. 

Há não muito tempo, era comum tentar denegrir, também, o trapicheiro o chamando de índio, como se isso fosse realmente uma ofensa. No início da colonização, havia muitas tribos às margens do Subaé, inclusive na área que viria a ser o bairro do Trapiche. No entanto,  não é preciso ser nenhum gênio para compreender que é muito mais digno descender de índios do que de barões escravocratas da cana-de-açúcar ou de capitães do mato (excetuando-se, obviamente, seus bastardos). O próprio Mem de Sá, terceiro governador-geral do Brasil, que instalou um dos primeiros engenhos de moer cana em Santo Amaro, ao comandar pessoalmente o desbravamento da região, afirmou, em seu “Instrumento de Serviços”, ter destruído mas de cento e trinta aldeias, um verdadeiro genocídio. Então, quem é que deve se ofender aqui?

O santo-amarense é conhecido pela paixão exacerbada por sua cidade, por seus feitos históricos, por seus filhos célebres. O trapicheiro vai além disso: é apaixonado por Santo Amaro, defende com o brio em riste seu bairro, mas é o primeiro a apontar as deficiências e o que pode ser melhorado no local. Do seu ponto de vista, o Trapiche não é distante; a Praça da Purificação, sim. 

Confesso que sinto falta de sua gente, de sua espontaneidade, das suas esquinas. Sinto falta de uma boa moqueca de mapé, do baba no Riachuelo, das manhãs no antigo Prado Valadares. Sinto falta do seu São João, da viola de Luzia, do licor com sabor de chuva. Sinto falta da alegria do seu domingo, de ser menino, de ser mais índio.

Herculano Neto
Poeta, ficcionista e trapicheiro
mantém o blog POR QUE VOCÊ FAZ POEMA?

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